Nos últimos anos, o mercado de infoprodutos e cursos digitais tem experimentado um crescimento exponencial. Com a expansão da internet e o avanço da tecnologia, cada vez mais as pessoas buscam adquirir conhecimento e habilidades por meio de conteúdos disponibilizados on line. Nesse contexto, a liberação programada de infoprodutos e cursos digitais tem se destacado como uma estratégia eficaz para produtores e consumidores.
A liberação programada consiste na prática de disponibilizar o acesso a determinados conteúdos de forma progressiva, ao longo de um período predeterminado. Em outras palavras, ao adquirir um infoproduto ou curso digital, o consumidor não tem acesso imediato a todo o conteúdo, mas sim a partes dele, que são liberadas conforme uma programação previamente estabelecida pelo produtor.
Do ponto de vista jurídico, a liberação programada de infoprodutos e cursos digitais levanta algumas questões importantes relacionadas principalmente aos direitos do consumidor e às responsabilidades dos produtores. A nossa legislação não tem dispositivos legais expressos sobre essa prática e a nossa jurisprudência ainda é muito tímida. Entretanto, essa prática é amplamente difundida especificamente nos Estados Unidos, sendo adotado a nomenclatura de “scheduled release “. O Legal Information Institute” (LII) da Universidade de Cornell, oferece acesso gratuito a uma variedade de recursos legais, incluindo estatutos, regulamentos, decisões judiciais e artigos jurídicos sobre uma ampla gama de tópicos, incluindo direito do consumidor e direito contratual, sobre esse tema. Aqui temos apenas o intuito de tecer breves e concisas considerações sobre essa prática, mas, caso o leitor tenha interesse ou precise se aprofundar sobre o tema, o endereço do site é: https://www.law.cornell.edu/,
Voltando ao exame da prática em nosso ordenamento jurídico, é importante frisar que os produtores devem garantir a qualidade e a relevância do conteúdo disponibilizado em cada etapa da liberação programada. Os consumidores têm o direito de receber aquilo pelo qual pagaram, e os produtores têm a responsabilidade de fornecer um conteúdo que atenda às expectativas criadas durante o processo de comercialização.
Muito embora não exista previsão legal expressa para a adoção da prática da liberação programada pelos fornecedores de produtos digitais, nos parece que esse direito do fornecedor tem berço em normas que garantem direitos e garantais inderrogáveis ao próprio consumidor, o que em princípio poderia parecer uma contradição, mas não é, pois o Código não é do Consumidor. A Lei é de todos e para todos, nessa relação jurídica o fornecedor não é o vilão e o consumidor não é a vítima. O papel de ambos deve ser de colaboração mútua, condizente com a boa-fé objetiva e não de antítese. Explica-se: A aquisição de um infoproduto se dá por meio de um contrato digital que se aperfeiçoa quando o consumidor paga pelo produto. No entanto, antes disso é necessário que ocorra a aceitação dos termos e condições para o uso do produto. Daí surge o direito de o fornecedor apresentar exceções e condições específicas para a contratação, pois o Código de Defesa do Consumidor prevê que as cláusulas contratuais restritivas de direitos do consumidor sejam redigidas de forma clara e em linguagem acessível (art. 46, do Código de Defesa do Consumidor). A contrario sensu, como base neste mesmo dispositivo legal, o fornecedor de produtos pode estabelecer condições contratuais e restringir direitos, desde que seja observada a boa-fé, e que as cláusulas sejam redigidas de forma clara, precisa e em linguagem acessível.
Em outras palavras, embora seja público e notório que os termos gerais de uso e condições são cláusulas de um contrato de adesão, isso não significa dizer que não tem validade jurídica. Muito pelo contrário, os termos e condições gerais têm sido validados nos tribunais brasileiros e internacionais desde que estejam de acordo com o princípio matriz do Código de Defesa do Consumidor, previsto no Artigo 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual são direitos básicos do consumidor a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços.
As cláusulas que decorrem do direito de o fornecedor estipular condições especiais para aquisição do produto não serão invalidadas em nenhum contrato ou termo e condições gerais de infoprodutos, se o fornecedor fizer constar no texto contratual a condição especial ou advertência sobre o uso do produto, seguindo a forma de redação exigida pela Lei. Será, portanto, legítima a contratação, porquanto, uma vez observadas as exigências, presume-se que o consumidor compreendeu todas as informações sobre o produto, razão pela qual não poderá alegar a própria torpeza e pedir a anulação do contrato alegando, como se faz muitas vezes de má-fé, que os termos e condições são, por si só, nulos por terem a caraterística de contrato de adesão.
Desse modo, se forem observados esses requisitos (cláusula com informação clara, redigida em linguagem acessível, grifada e em negritos de preferência), o fornecedor e o consumidor terão uma relação contratual transparente, firmada de boa-fé, de modo que nenhuma das partes sofrerá restrição abusiva em seus direitos. O fornecedor não será obrigado a liberar todo o conteúdo de seu produto, pois praticamente será obrigado a esvaziar a remuneração pelo conteúdo, posto que, no futuro, se liberar a sua íntegra, antes de decorrido o prazo de sete dias para o exercício do direito de arrependimento, certamente terá que devolver o dinheiro a inúmeros consumidores que abusam desse direito de arrependimento assistindo ao curso todo sem nada pagar ao final por ele. Cuida-se da teoria do Abuso do Direito, por meio do qual o direito, mesmo estando previsto em lei, não pode ser exercido de forma abusiva.
Por outro lado, o fornecedor deve garantir a liberação de grande parte do conteúdo, ou de etapas das quais o consumidor possa extrair a qualidade do conteúdo, sob pena de incidir também em abuso de direito. O consumidor deve ter o direito de poder avaliar o curso de forma mais profunda, degustando a experiência, totalmente destacada da propaganda. Essa é a finalidade do instituto, o fornecedor garante a qualidade do produto e, portanto, oferece o acesso sob determinada condição, e, assim, permite ao consumidor que usufrua do produto, com a garantia de que, se dele não gostar, poderá pedir a restituição de seu dinheiro.
Já tivemos a oportunidade de ressaltar que o Código de Defesa do Consumidor não deve ser visto com um instrumento de bloqueio para livre iniciativa. Muito pelo contrário, o legislador pretendeu estabelecer limites para a livre iniciativa e coibir abusos, não para anular o comércio e circulação de riquezas.
Se você é consumidor e tem dúvida sobre a liberação programada, fique tranquilo, você terá direito de acesso ao produto, sobre uma parte relevante e profunda do curso para que você possa avaliar a extensão do conteúdo, mas, por outro lado, deve observar que, ao aceitar os termos de uso e condições do produto, não poderá exigir do fornecedor que libere todo o conteúdo no produto, antes de decorrido o prazo de 7 (sete) dias para o exercício do arrependimento.
A Boa-fé é uma via de mão dupla, e, ao contrário do que alguns entendem, o Código de Defesa do Consumidor não é meio de coação para que o consumidor tripudie e adote qualquer tipo de postura contra fornecedores de serviços, abusando de direitos, apenas por ser consumidor.
A conquista do nosso CDC é de todos, fornecedores e consumidores, porque a Lei prevê direitos e garantias para os todos os lados da relação de consumo.
Nunca é demais lembrar um dos mais relevantes princípios do Direito, “Os contratos existem para ser cumpridos” – pacta sunt servanda.
Concluindo, para não mais atordoar o leitor com conceitos jurídicos indeterminados, o fornecedor deve cumprir o contrato garantindo a transparência, clareza e previsão da liberação programada nos termos de uso, cumprindo a sua parte no contrato, e o consumidor deve cumprir o contrato, em nosso entender, só sendo razoável e justo que exerça o direito de arrependimento, nos casos específicos de liberação programada , em casos extraordinários, nos quais ele não tenha tido acesso a uma parte do conteúdo que seja relevante.
Meu desejo é que os nossos tribunais passem a decidir esses novos casos observando sempre o princípio constitucional da razoabilidade (art. 5º, da Constituição Federal) e repudiando o abuso de direito, preservando sempre em primeiro lugar a manutenção do contrato e a boa-fé.
Carlos Fernando Carvalho Motta Filho, é advogado atuante na área de contenção e resolução de conflitos de consumo estratégicos e de massa, sendo autor de vários artigos publicados sobre o tema.